Sábado, 17 de Outubro de 2015

NUM DISCURSO DE MIA COUTO | « E disse mais, falou daquilo que ele chamou das “balas doces do inimigo”. Referia-se às formas mais subtis de sedução e de corrupção que, no seu entender, eram mais perversas que as verdadeiras balas»

 

 

MiaCouto 1.jpg

 «(...)

Segundo episódio – O não discurso de Samora

No Quarto Congresso da Frelimo, em 1983, fui designado como responsável do Gabinete de Imprensa. Nós, os jornalistas, ficávamos confinados a um compartimento envidraçado, numa espécie de aquário suspenso sobre a grande sala. Na altura, nós já produzíamos emissões de televisão para além, é claro, da rádio e dos jornais. Logo no inicio dos trabalhos, Samora Machel subiu ao pódio para usar da palavra. Trazia consigo o Relatório do Comité Central que era, à maneira dos partidos revolucionários, um documento volumoso. Assim que começou a ler, Samora teve uma breve hesitação, colocou os papéis na bancada e falou de improviso. Foi um improviso breve mas o que ele disse foi, para mim, mais importante e mais duradouro que o extenso relatório do Comité Central. Inclinado sobre o pódio, como se ganhasse a proximidade de uma confidencia, Samora convertei a solene Sala de Congressos num espaço com intimidade familiar. E falou do seu sentimento de estranheza ao ver-se como um ex-guerrilheiro agora rodeado de facilidades, cercado pelas obrigações protocolares e de segurança de um palácio presidencial. E disse mais, falou daquilo que ele chamou das “balas doces do inimigo”. Referia-se às formas mais subtis de sedução e de corrupção que, no seu entender, eram mais perversas que as verdadeiras balas. E ele interrogou-se se os seus companheiros estariam preparados realmente para esse embate, se estavam preparados para enfrentar as balas de açúcar. A sala estava suspensa naquela confidência. A rádio e a televisão transmitiam em direto aquele desabafo do Presidente. E escutavam-se não só as palavras mas os silêncios e a respiração inquieta do presidente. Naquele momento, um oficial do protocolo entrou na Gabinete de Imprensa e entregou-me um papel com uma instrução rabiscada que dizia: interrompam imediatamente a transmissão. Aquilo foi, para mim, um balde de água fria. Porque me parecia, como jornalista e como cidadão, que estava ali a acontecer tinha um alcance didático que não poderia ser recuperado se perdêssemos a transmissão. Mas havia naquele bilhete uma ordem que eu não tinha modo de refutar. Ocorreu-me uma pequena manobra de diversão. Eu queria apenas uns minutinhos adicionais. Quem sabe o Presidente não usasse mais que esses minutos? E escrevi o seguinte nas costas no bilhete: desculpe, não entendo bem a assinatura, não se importa de identificar melhor, afinal é o Presidente quem está falar…. Dobrei muito lentamente a folha e pedi ao mensageiro do protocolo que fosse de volta. Aquele vai e vem deu-me tempo para que o presidente terminasse o seu improviso em transmissão direta. De toda a minha carreira de onze anos de jornalismo talvez tenha sido este o momento maior. Porque estava ali um dirigente de uma nação que se despia do seu estatuto infalível e partilhava não uma certeza, mas a confissão de uma insegurança, de um fragilidade. Estava ali não um líder revolucionário discursando em voz alta, mas um homem dobrado pela angústia e murmurando dúvidas sobre o quanto valera a pena toda a sua luta. (...)». Leia na integra.

publicado por MAF às 22:47
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